O adeus a Lynch e o cinema do futuro.
Pensamentos em três partes sobre David Lynch, seu legado, o uso de IA em "Emilia Perez" e "O Brutalista" e uma nova era no cinema moderno.
Parte um: adeus à Lynch
Lembro nitidamente da primeira vez que assisti a “Cidade dos Sonhos” de David Lynch. Recordo de me render à explosão de sentimentos que variaram do medo ao fascínio, estupefação ao tesão e, finalmente, à angústia. Terminei minha experiência inebriada diante de uma constatação incontornável: há mais sobre o cinema do que eu poderia imaginar. Dias depois, eu assistiria a “Persona” de Ingmar Bergman e “2001: Uma Odisseia No Espaço” de Stanley Kubrick, também pela primeira vez, apenas para chegar a uma segunda constatação tão incontornável quanto a anterior (a qual descobriria ser, também, a sontagiana das afirmações sobre o cinema): não mais tentar interpretar, mas sim me permitir sentir.
É claro que eu já amava tudo que envolvia a arte cinematográfica àquela altura, mas essa tríade foi crucial na minha mudança de perspectiva e na minha vontade de continuar explorando novas maneiras de fazer cinema. Quando os créditos da obra-prima de David Lynch rolaram, eu não sabia explicar absolutamente nada do que tinha visto e, pela primeira vez na minha vida, eu fiquei feliz diante disso. Não passou pela minha cabeça, em nenhum momento, a ideia de abrir o Google e procurar uma interpretação para o que eu tinha acabado de ver. Era a primeira vez na minha vida que a experiência que eu tinha acabado de contemplar era suficiente. Me bastava.
Após o filme, lembro que, ainda usando a legenda e os comentários do Instagram, fiz um texto bastante emocionado sobre minha nova perspectiva e descoberta. Era uma nova maneira de enxergar o cinema, pelas lentes de algo até então desconhecido. Lynch havia aberto um mundo inteiro de possibilidades sobre a arte para mim, ele tinha a chave para algo pelo qual eu seria eternamente grata. Com seu cinema, o diretor foi capaz de materializar o que existe de mais profundo na experiência humana e na sociedade, aquilo que mora nas palavras não ditas e nos pensamentos que nem sempre concretizamos - mas moram em nós. Os seus filmes são como um estado de limbo entre sonho e pesadelo, caminhando sob o fio do estranhamento com a maestria de quem sempre sabe onde chegar.
O diretor, também artista plástico e músico, emprestou ao cinema seu conhecimento sobre as múltiplas texturas que fazem parte do que é estar vivo e compreendeu, como poucos, o poder desta arte em pintá-las. Hoje, como crítica, passa pela minha cabeça com frequência que os melhores cineastas são sempre aqueles que compreendem o cinema dentro das suas interseções. Cinema e música, cinema e pintura, cinema e literatura, cinema e arquitetura, cinema e tudo-que-faz-a-humanidade-brilhar-os-olhos. Esses sim são os verdadeiros mestres, os que entendem não apenas da linguagem cinematográfica como das maneiras em transpô-la. Em suma, é isso que faz um gênio. É o que, afinal, torna sua arte inesquecível.
Como gênio, o legado de David Lynch jamais vai acabar. Um ponto de vista curioso sobre o cinema, vindo do próprio, era que essa arte era como “um cemitério a céu aberto.” Bonito, não? Na verdade, isso faz do cinema o mais bonito dos cemitérios, eu diria. Tal afirmação que vi na timeline de uma rede social, seguida da triste notícia sobre a sua morte, me deu um estalo muito grande, o início de uma terceira constatação incontornável: talvez eu ame o cinema mesmo pela possibilidade de capturar um momento, um instante, diante do qual o ato de esquecer se torna impossível. Eu sempre tive medo do esquecimento, bem mais do que da morte. E, pelo cinema, se você consegue capturar um instante de imagem de alguém que já se foi, ou mesmo a sua ideia, você tem um pouco daquela pessoa para sempre - ou pelo menos enquanto o cinema existir.
É como algo metafísico, mesmo. Uma ideia meio Rossellini, meio Renascentista. Talvez intrinsecamente italiana - ou essencialmente humana? Não sei, mas a arte é essa ideia maluca e sempre presente na nossa história de que podemos, através desta, chegar ao mais próximo que existe de Deus. É a transcendentalidade da existência, uma maneira de transpor a realidade e materializar o indizível. Se parece que estou descrevendo o cinema Lynchiano, é porque certamente foi algo que ele compreendeu e provocou, mudando para sempre do cinema à televisão. Diante disso, o que mais podemos fazer, senão agradecê-lo? É difícil dizer adeus aos gênios, mas permanecemos com seu saber inestimável como um antídoto para o tão temido (ao menos, por mim) esquecimento.
Parte dois: o cinema e o fluxo constante da precarização do trabalho
A menos de três dias para a lista de indicados ao Oscar 2025, uma bomba cai no colo de Hollywood: dois dos filmes mais cotados para as premiações utilizaram IA no seu processo de feitura. De acordo com um artigo escrito pelo site “Red Shark News”, os dois filmes são “O Brutalista” de Brady Corbet e “Emilia Perez” de Jacques Audiard. Com os votos já encerrados, ambos os filmes dificilmente serão afetados na lista do próximo dia 23, mas se a fogueira contar com o auxílio de algumas lenhas a mais, é possível que Adrien Brody e Karla Sofía Gascón sejam os mais diretamente afetados pela notícia.
Na matéria, o editor de produção de “O Brutalista”, Dávid Jancsó, admitiu o uso de inteligência artificial em dois momentos: para aprimorar o sotaque húngaro do personagem de Adrien Brody e para gerar desenhos de arquitetura, no epílogo. Já a mesma IA, Reespecher, parece ter sido usada em “Emilia Perez” para afinar a voz de Karla, uma vez que o tom das músicas nem sempre favorecia a atriz. Essas afirmações vêm com o título de outros filmes como “Alien: Romulus”, “Nyad” e “O Exorcista - O Devoto”.
Pouco tempo depois da greve dos roteiristas, cuja pauta central girou em torno do uso de IA como agente da precarização do trabalho dessa classe, mais uma vez esta tecnologia volta a aparecer no centro das discussões de Hollywood - dessa vez com um uso ainda mais polêmico que questiona os limites do uso de IA dentro do cinema. Afinal, o que pode ou não ser aprimorado no cinema, por meio da tecnologia? Se ambos os atores tiveram suas performances “aprimoradas” por programa de inteligência artificial, em que grau podemos dizer que a interpretação é uma fraude? Quais são os limites? Brody e Gascón deram seu consentimento para o uso de IA na etapa da pós-produção? São muitas perguntas.
O que mais me intriga sobre o uso de novas tecnologias no cinema, especialmente nesse caso, é até que ponto podemos evitar ou até que ponto de fato queremos evitar sua presença no cinema. Em que pese todos os pontos negativos sobre o uso de inteligência artificial no meio artístico, uma parte de mim acredita que seja tarde demais para que possamos descartar por completo a sua presença. Parece que quanto mais evitamos tocar no assunto, mais ele aparece. É o novo jumpscare de uma indústria cuja maneira de trabalhar transformou-se por completo.
É claro que é possível discutirmos por horas se o uso de IA empobrece ou não essas obras, mas o que esse caso deixa nítido, sobretudo, é que dentro dos padrões de produtividade de Hollywood, o uso de IA convém. A velocidade com a qual novas obras chegam todos os dias às plataformas de streaming jamais irá permitir que um trabalho artesanal e dedicado aos detalhes, que pressupõe tempo, de fato prospere. Todo filme e série hoje vêm acompanhados de uma enorme urgência, diante da qual o tempo se apresenta como um obstáculo.
Às grandes empresas, não interessa o tempo adequado para a construção de um roteiro de qualidade, tanto quanto não é interessante dedicar tempo à estética de um filme, à sua fotografia, à direção de arte. Tudo isso tem sido delegado à pós-produção, com presets prontos para serem aplicados a qualquer filme, bastante uso de CGI e, claro, inteligência artificial, até mesmo na experiência de som.
Um dos filmes envolvidos na polêmica, inclusive, “O Brutalista” é um épico de três horas cujo tempo dado para filmagens foi de apenas 34 dias. Muitos críticos internacionais, sobretudo estadunidenses, vinham destacando o enorme feito do diretor dado o pequeno espaço de tempo que teve, mas agora sabemos que não foi bem assim. A tendência é que mais e mais obras se rendam às “maravilhas” da tecnologia da inteligência artificial para aprimorar o resultado dos seus filmes no menor tempo possível, o que implica em uma forma de trabalhar cada vez mais relapsa e acelerada, indicando para a precarização do trabalho desses profissionais que serão cada vez mais substituídos por uma programação cuja capacidade de fazer artístico não é apenas limitada, como inexistente (no sentido mais clássico da arte como manifestação humana).
Parte três: o legado de um artesão
Tudo isso me lembra de quando vi, pela primeira vez, o vídeo de Lynch irritado nos bastidores de “Twin Peaks: The Return” quando alguém sugere o corte de uma porque estava ‘longa demais’. No curto vídeo, o diretor responde: “Quem porra liga para quão longa é uma cena?”
No mundo em que vivemos, todos parecem ligar para o quão longa é uma cena (e para o quão longo é um filme, também). Como no processo da obra, seu consumo também parece estar mais ligado ao tempo que à experiência - e o seu legado parece estar mais ligado à ideia funcionalista da arte do que, de fato, ao que sentimos a partir desta. Nesse cenário, a importância do legado deixado por Lynch é ainda mais inestimável.
Sua maneira artesanal de enxergar o cinema, sob a ótica da valorização do tempo e todas as etapas presentes no processo de feitura de um filme, foram fundamentais para sentimentos e ideias convergirem a ponto de dar vida a uma linguagem revolucionária. Como seriam os filmes de Lynch se ele não tivesse tempo? Se todas as ideias tivessem que ser processadas em uma velocidade que não corresponde à experiência humana, e sim de uma máquina? Caso ele, prontamente, obedecesse a quem lhe quis impor um limite para o tempo de uma única cena?
De maneira ainda mais distante, seriam os pintores renascentistas capazes de apresentar trabalhos tão monumentais para a humanidade caso seu prazo fosse estipulado pelo mercado, sob a constante ameaça de máquinas substituírem seus feitos? O que será da arte quando nosso contato com o que até então existe de mais humano, a ponto de nos transcender ao metafísico, se tornar balizado por meio mundo de algoritmos?
Em uma entrevista recente à Cahiers du Cinema, Lynch dizia estar triste pelas pessoas que usavam o smartphone para assistir a um filme. Segundo ele, essas pessoas não viram o filme. Na oportunidade, ele também criticou as plataformas de streaming e se mostrou preocupado com o futuro do cinema - é o fim do cinema como conhecíamos, ele diz. Sua passagem também marca algo nesse sentido. Na verdade, com as morte de Lynch e Godard, o cinema parece estar pronto para uma nova era - e esta não é lá muito esperançosa.
Estamos caminhando para um momento um tanto esquisito da humanidade, onde as texturas se perdem - nas telas e fora delas. Momento diante do qual o interesse pela experiência humana genuína parece diminuir e a vontade de compreender nossas entrelinhas e complexidades, nossas nuances e turbulências, é cada vez mais problematizável. É um momento de crise, sem dúvidas. De precarização, polarização e desvalorização generalizada do fazer artístico e da mão de obra, em geral, com uma padronização mecânica que não abre muito espaço para a liberdade criativa total - pelo menos não no mainstream.
Proteger e perpetuar o legado de Lynch, nesses temos, torna-se ainda mais vital para pensar em maneiras de abrir as brechas deixadas pela indústria (algo que ele fez bastante com seus filmes, no fim do século passado e início deste) e repensar o cinema no sentido de reacender essa chama da criatividade, atingível através do processo artesanal do cinema (algo que Godard também defendia de maneira ferrenha). Só assim será possível resgatar a experiência humana através da sétima arte e demonstrar que, ultimamente, ninguém tem mais domínio sobre a arte do que nós mesmos: humanos de carne, osso e inconsciente.
Cineclube
O cineclube começou muitíssimo bem! No nosso primeiro encontro, discutimos o clássico cult de Kathryn Bigelow, “Estranhos Prazeres” (1995). Discutimos temas como: cyberpunk, o cinema noir, o voyeurismo e a escopofilia no cinema e no uso das novas tecnologias, a documentação da realidade e o ciberativismo e alguns outros temas muito interessantes e atuais.
O filme está disponível nas plataformas Filmicca e Looke. Nossa próxima discussão será sobre “A Conversação” de Francis Ford Coppola.
Dicas da quinzena
Podcast que investiga a vida de Jair Bolsonaro, sua relação com a família Paiva e, especificamente, com Rubens Paiva e ainda destrincha a influência do “Olavismo” no nascimento de uma nova extrema-direita no país: Retrato Narrado;
Um álbum que explora as relações culturais, políticas e econômicas entre Porto Rico e Estados Unidos, refletindo sobre o sul-global através da mistura entre pop, reggaeton, salsa e outros ritmos caribenhos: Debí Tirar Más Fotos de Bad Bunny;
Um filme de Wim Wenders, gravado em Cuba, o qual em certa medida conversa com o álbum de Bad Bunny e suas influências: Buena Vista Social Club (1999) disponível na Mubi;
Um livro que li no ano passado e que mudou a minha ideia sobre o ator e sobre seus famosos métodos: Sonny Boy, a biografia de Al Pacino disponível pela Rocco;
Um texto, citado de maneira indireta nesta newsletter, o qual transformou a minha visão de cinema na mesma época em que a obra-prima de David Lynch, “Cidade dos Sonhos”, também me atravessou: Contra a Interpretação de Susan Sontag.
Opa, te descobri aqui e fiquei muito feliz. Coincidentemente também falei um pouco sobre Lynch e i.a. esses dias. Acredito que a nossa relação (como espécie)com a arte precisa ser fortalecida em tempos de "conteúdo" e utilitarismo. O artista vive no fazer dele. A dificuldade aparece quando tudo vira indústria, infelizmente.
"...resgatar a experiência humana através da sétima arte e demonstrar que, ultimamente, ninguém tem mais domínio sobre a arte do que nós mesmos: humanos de carne, osso e inconsciente." Canetou.
Apesar de não ter visto praticamente nada do Lynch, a morte dele foi, talvez, a que mais me deixou triste entre os cineastas e atores dos últimos anos. Realmente, a morte dele parece ter levado algo especial, para além dele próprio, e só piora com essas histórias dos seus últimos projetos recusados e agora esse vazamento do uso de inteligência artificial nesses filmes. Para o cinema como conhecemos, esses são sinais do fim dos tempos.