Cansei do eco da minha própria voz.
Reflexões sobre Vestida Para Matar, minha saída do X e a maneira como as redes sociais incentivam a ausência de moderação emocional e senso crítico, inviabilizando boas discussões sobre arte.
I.
Antes de tudo, preciso dizer o óbvio: De Palma é um grande gênio. Por volta do meu segundo filme dirigido por ele, já estava convencida disso, mas domingo assisti ao meu quase décimo filme do diretor e me impressiona como é sempre a garantia de um bom momento. Como Hitchcock, sua grande inspiração, ou Ingmar Bergman, Billy Wilder, John Ford e alguns outros poucos mestres que tivemos nesses mais de 100 anos de história do cinema, De Palma atinge o lugar sublime. Um lugar onde o maneirismo impera, consciente da impossibilidade de contar novas histórias, mas convencido a contá-las de uma outra maneira, boa a ponto de um lugar na eternidade.
Vestida Para Matar, de 1980, foi meu filme dirigido por De Palma escolhido do mês. Uma obra que reinventa Psicose à sua maneira, com pitadas suficientemente patológicas a ponto de lembrar Roman Polanski em O Inquilino (1976). Quem já assistiu De Palma, sabe bem do que estou falando quando digo que seu cinema é estiloso, esteticamente inconfundível. Ele navega pelas águas dos gialli, ou melhor, pelo banho de sangue e roupas de couro preto do gênero, encerrando a sua jornada em uma grande revelação que parece nos trazer de volta ao quarto do Bates Motel, de onde Norman repousa tranquilo na sua cadeira de balanço. Aquele olhar horripilante.
Não é mera emulação, claro. O que o cineasta realiza é, na verdade, uma nova proposição formal. É maneirismo. O uso do split diopter, tão memorável em Um Tiro na Noite (1981), lançado um ano depois, aqui é utilizado como um recurso para repensar a maneira de se incluir uma terceira pessoa em uma conversa — apenas pela mise-en-scène. O filho da vítima, peça fundamental para a obra, é enquadrado com o delegado e outro personagem, ao fundo, ouvindo a conversa como se dela participasse.
A estética carregada no resultado que o recurso proporciona posiciona o personagem, através da redução da profundidade de campo, longe o suficiente para visualizarmos a barreira física imposta pela parede e, ao mesmo tempo, perto o suficiente para acreditarmos que ele de fato participa daquela conversa. Na cena do elevador, por exemplo, a decupagem escolhida para filmar um assassinato inesquecível tem como trunfo o uso máximo do espaço reduzido, incluindo objetos como o espelho enquanto um dispositivo revelador. Da câmera lenta à roupa branca ensanguentada, tudo é carregado de estilo, de tensão e, por que não, de tesão.
Todavia, existe um grande elefante branco nesse filme. Sua trama, pode-se considerar que seria hoje, no mínimo, equivocada. O whodunit acaba em um assassino transgênero que mata mulheres para matar, simbolicamente, um desejo heterossexual. Nesse sentido, podemos pensar que até o temido Emilia Perez compreende que uma coisa não tem nada a ver com a outra, identidade de gênero não é o mesmo que orientação sexual, e tanto Manitas como Emília continuam se atraindo sexual e amorosamente por mulheres — um ponto pro filme, ê.
É delicado falar sobre questões como essas em filmes de quarenta anos atrás. As análises tendem a ser simplificadas e as discussões impossibilitadas, por argumentos que usam a guarida do anacronismo ou do “cancelamento” (terrível e, constantemente, mal utilizada palavra) total, como subterfúgios que desestimulam discussões mais moderadas e menos inflamadas sobre arte. Sinto que, quando falamos sobre cinema, ultimamente, temos que caminhar na corda bamba entre não nos tornarmos sujeitos completamente alheios às questões sociais e à maneira como a realidade material se apresenta em obras cinematográficas e não nos tornarmos, também, meros papagaios que aprendem palavras como “romantização”, por exemplo, e saem aplicando a todo e qualquer contexto até que se esvazie de sentido.
II.
Essa discussão me faz lembrar por que eu saí do X, antigo Twitter. Além dos motivos mais óbvios, como a tonelada de comentários absurdamente maldosos e alguns até criminosos, que afetaram a minha saúde mental diariamente, minha visão de mundo estava ficando binária. Ridiculamente binária. No contato diário com um universo onde não existem nuances, defender aquilo que você acredita significa, cada vez mais, usar da linguagem mais radicalizada possível.
O algoritmo do X premia essa lógica ao retribuir com levas de atenção, o famoso engajamento, aquilo que tem mais probabilidade de atrair intensas discussões. O resultado? Um “filmtt” cheio de polêmicas vazias, munido de uma linguagem furiosa, enraivecida, doentia, até, em detrimento de boas informações ou interações de qualidade. Chegou a um ponto em que, além de reproduzir o mesmo modus operandi, o engajamento era tão intenso que eu acordava com cerca de mais de 100 notificações para ler, todos os dias.
Algumas vezes, era surpreendida da noite para o dia com uma nova e inesperada, de verdade, polêmica. Um comentário que seria comum a qualquer pessoa se tornava uma grande questão rapidamente (a velocidade daquela rede, por sinal, não é para amadores) que não raro implicava na necessidade de silenciar o tweet, trancar a conta ou apagar o aplicativo por algumas horas. Dependia do nível do circo de horrores. Uma, duas, três vezes por ano, é razoável de lidar e eu fiz isso ao longo de dois anos inteiros. Me rendeu engajamento e bastante trabalho, bastante.
Contudo, quando acontece uma, duas, três vezes por mês, a coisa muda de figura. Completamente. Além de cansativo atribuir uma nota de rodapé a qualquer coisa dita, notei que tornava-se forçosa, inclusive, a uniformização do pensamento. Toda rede social, diga-se de passagem, parece operar nesse mesmo viés. O objetivo é separar pessoas por grupos e segregá-las ao máximo, gerando uma falsa ideia de debate. Falsa, pois, seja falando com quem já concorda conosco, seja com quem está ali só para xingar, dos dois modos estamos falando com as paredes.
Senti como se escutasse o eco da minha própria voz e, sinceramente, passei a odiar me ouvir. Passei a ter aquela incômoda sensação de quando você fala demais para desconhecidos e depois se pergunta se não deveria ter ficado calada. Aquela sensação terrível que te faz passar horas martelando, arrependida. Quando falava muito ou quando falava pouco, não importava, a repercussão sempre me gerava pequenas crises de ansiedade ao longo do dia. Vi uma vez uma pessoa que me disse, com total honestidade: 'Por que você responde a quem te odeia?'
Boa pergunta, pensei. Nunca respondi e confesso que não sabia a resposta direito até ler o livro que me fez ter a certeza de que eu estava presa em um ciclo dominado por algoritmos e que isso não é conspiratório, pelo contrário, é ciência. Em “Máquina do Caos”, o autor explica a lógica das redes sociais e, especificamente do X, como resultado de uma pesquisa que passou anos para ser formulada:
“(...) mas a influência dos algoritmos só se intensificou inclusive no último bastião: o twitter. o serviço havia passado anos mostrando aos usuários um feed simples e cronológico com tweets de amigos. Até que em 2016, introduziu um algoritmo que selecionava as postagens para engajamento, é claro, com efeito previsível. O tweet médio com curadoria era mais emotivo em todas as escalas que o seu equivalente cronológico. O resultado foi exatamente o que se viu no Youtube e no Facebook, parece que o motor de recomendação recompensa a linguagem incendiária e as afirmações mais absurdas. era como se toda uma região tivesse decidido de uma hora para outra que valorizava a provocação e a indignação acima de tudo e as recompensava com levas de atenção que na verdade eram geradas por algoritmos.”
Ou seja, não importa quantos comentários positivos recebia, os comentários negativos sempre vinham primeiro e tinham um efeito mais reativo no meu cérebro, acredito, pois é disso que vive a internet.
Tenho sentido que até mesmo críticos que parecem dispostos a conversar com certa moderação emocional sobre arte fora das redes, perdem a mão quando ocupam esse espaço — aconteceu comigo. Pessoas que detêm enorme conhecimento, extensos anos de carreira, propriedade no que falam, são completamente vencidas pela lógica que premia o ataque aos seus pares. Nem precisa que se trate dos seus pares, na verdade, basta qualquer pessoa que tente falar sobre cinema e que o tiro saia pela culatra para que se torne um ataque pessoal. Às vezes velado, às vezes não.
É compreensível que, quando você passa a fazer parte de um grupo, parece que tudo aquilo que é externo a ele deve ser classificado como errado, burro, limitado. Quando uma pessoa não possui o mesmo nível de conhecimento que você, quando ela ousa questionar você, suas ideias e coisas parecidas, tudo soa como ataque ou provocação suficiente para ensejar um. E é preciso dizer o óbvio: trata-se de uma grande bobagem, mas é o pensamento dos famosos e antigos trolls como pessoas que executam ataques coordenados por trás de uma performance de superioridade intelectual que parece não encontrar lugar a contento no mundo real. Por essa razão, vivem nos escombros das redes que os premiam, mal percebendo serem meros fantoches de uma atenção falseada.
A última coisa que qualquer pessoa que realmente ama cinema, ou qualquer forma de arte, na verdade, deveria fazer é desestimular o debate de ideias. Seja por meio do ódio ou da cegueira perpetuada pela crença inabalável em suas próprias convicções.
III.
Diante de cenários inflamados, de reações desproporcionais e linguagem incendiária, fico com as nuances das coisas, da arte — das discussões possíveis por e através desta. Não sei até que ponto esse mundo virtual cheio de binarismos vai nos levar, mas sei que já é possível sentir suas consequências na maneira como nosso cérebro opera, em como temos nos relacionado com aqueles que de nós discordam ou pouco se parecem, à depender de quanto tempo você se expõe a essa loucura.
Depende também do quanto você valoriza a sua própria opinião a ponto de achar necessário compartilhar com o mundo e do quanto, por fim, está disposto a despender em tempo antes de emiti-la. Aliás, depois de tudo isso, ainda vale a pena emiti-la, será mesmo?
A ausência de moderação não está só nos comentários ofensivos, polêmicos e incendiários, que reverberam a cultura troll para diferentes segmentos em diferentes redes, mas também nas reações extremadas a filmes, por exemplo. Toda semana temos a melhor obra de todos os tempos da última semana ou a pior da história do cinema, não cabe aos filmes simplesmente existirem, pois nesse cenário, não é isso que vai atrair likes.
Com isso, a opinião sobre uma obra é cada vez menos formada pelo que sentimos combinado à nossa capacidade de exercer nosso pensamento crítico, e mais pela maneira como meus pares aprovam ou não, entendem ou não, determinado filme. É a síndrome do eu (a equivalência de um comentário negativo sobre algo que você gosta a uma ofensa pessoal e a toda a sua família), combinada com a total recusa pelo debate.
Para piorar, as discussões levam a uma personalização da obra: se você gosta de um filme que eu entendi como machista, logo você endossa o machismo. Como se o filme não tivesse a capacidade de ser, pasmem, um filme e, como tal, não fosse a obra diversas vezes passível e até mesmo digna de avaliações menos reducionistas que essas.
É nesse lugar que eu volto, para encerrar esse já enorme texto, ao Vestida Para Matar. Se fosse dar um palpite sobre como esse filme seria discutido no X, eu diria que, seguindo a lógica daquela rede social, o algoritmo e, por consequência, seus usuários, escolheriam por dar eco às discussões mais simplistas e radicais possíveis. Tudo aquilo que pudesse ser usado para descartar nuances e complexidades, as conversas mais difíceis e sem saídas óbvias, seria um esforço muito grande de tempo e intelecto para se comprometer em tão poucos caracteres.
Pouco se falaria sobre como De Palma reinterpreta Psicose e sobre o maneirismo no cinema e na arte, ou sobre como a visão da transgeneridade estava infestada à época com compreensões machistas e transfóbicas da sexualidade, dada uma ciência completamente enviesada nesses termos. O que teríamos, em questão de horas, seria uma distorção completa que iria provavelmente muito além da obra e atacaria pessoalmente uma série de grupos e pessoas. Por essas e outras, perguntei-me mais de uma vez na última semana se valeria mesmo a pena continuar falando sobre cinema nas redes sociais, esse enorme espaço onde os algoritmos são nossos algozes, ao esconderem problemáticas capazes de transformar pessoas e distorcer ideias.
Não tenho respostas, se eu tivesse, não estaria escrevendo. Então, acho que continuo pelas perguntas, pelos incômodos e pelas crises. Não me oponho à crise, uma vez que fui compreendida assim, mas aproveito e deixo claro: me oponho a crises estúpidas. Aquelas que não discutem ideias, nem filmes, que abraçam a ignorância e desestimulam o conhecimento. Aquelas que matam quaisquer interesses pela arte, aquela que, infelizmente, parece se tratar da crise viral do mundo virtual. Não fugirei para as colinas, ainda, mas confesso que acredito que há quem, como eu, precise passar um tempo de férias por lá. Se possível, vendo filmes.
Mais:
Assisti Vestida Para Matar no Prime Video e canais e estou, atualmente, no BlueSky (fabianalima.bsky.social) e, claro, no Instagram, Substack, Cinem(ação) e Cinemafilia.com.br.
Realmente. Foi uma dificuldade no pré-Oscar "defender" Emília Perez como um filme interessante e que não era aquilo que o Tiktok estava tentando fazer dele. E isso no Instagram e entre meus amigos...
Obrigado por compartilhar esses pensamentos. É uma discussão muito válida e profunda, acredito que tu estejas certa em não ter uma resposta, mas principalmente inquieta o suficiente por ainda se fazer as perguntas. Eu não sou absolutamente ninguém no meio, mas tenho a mesma sensação de que realmente não existe debate e nem conversa sobre os filmes. O que há é uma constante exposição coletiva de definições que sobrepõem umas as outras, onde a concordância gera a satisfação do aceitamento de um coletivo, enquanto a discordância gera o oposto. É difícil, mas mais importante do que encontrar uma resposta é pensarmos sobre o tema e fazer essas reflexões.